Dia de Santos
Os contadores de histórias populares perpetuam, cândidamente, costumes e tradições de outros tempos. Este conto, escrito pelo senhor Fernando Máximo, de Avis, retrata, de forma simples, o peditório do Pão por Deus, ou Os Santinhos, no Alentejo de meados do século passado.
O desassossego começava muito antes do dia aprazado…
– Avó, ainda falta muito tempo?
– Não tenhas pressa meu amor…hoje ainda só é Quarta e os Santos são só no Domingo…
A pergunta repetia-se diária e invariavelmente até à véspera do dia tão ansiosamente esperado. Mas estava quase…e iria ser o meu primeiro dia de pedir “os santinhos”…
A escola primária era bem composta de cachopada. Numa mesma sala, a professora, a Senhora Professora Ermelinda – à altura ainda não havia doutoras, havia só “Senhoras Professoras” – conseguia, sem grande dificuldade, dar aulas às quatro classes, coisa absolutamente impensável nos dias de hoje. Ah! É de referir que a grande maioria dos alunos tinham aproveitamento. Mas deixemos isso porque o que me trouxe aqui não foi comparar o excelente aproveitamento dos alunos numa sala de quarenta crianças comparado com o actual, numa sala de menos de metade e que agora já são considerados demasiados…
Bem “rechochundinha” de carnes, pernas roliças e cara bochechuda, a Senhora Professora Ermelinda aconchegou os óculos no nariz mas mesmo assim, olhou por cima deles e em forma de despedimento, disse para os “seus meninos e meninas”:
– Não se esqueçam de fazer os trabalhinhos de casa amanhã, que é Sábado, para que no Domingo possam ir pedir os santinhos, já descansados…
A algazarra da hora da saída, como de costume, só se fez sentir já no recreio. Até ultrapassarem a porta mantinham uma atitude irrepreensível, como aliás era apanágio daquela escola e daquela professora.
– Manel não abales que temos de combinar p’ra amanhã…quem assim falava era o Zé que, conjuntamente com o Manel, a Ana, a Lurdes, o Ricardo e o Xico costumavam formar uma equipa para irem pedir “os santinhos”. Ao verem-me olhar para eles com olhinhos de súplica, o Zé, que era o líder do grupo, disse-me:
– Olha lá tu, ó Fernando, também queres ir?
– Se me levarem eu gostava muito e ia ficar muito contente…
– E vais ficar, está descansado….no Domingo, às nove horas no Cruzamento dos Braçais…
Não era, nem foi preciso mais conversa…
O mês de Novembro começava tal e qual como de mês de Outubro se despedira. Um vento frio vindo lá dos lados da Serra de Marvão, ou quem sabe até lá da ainda mais distante Serra da Estrela, parecia infiltra-se até aos ossos e, de quando em vez, uma chuva miudinha – ainda que pouco intensa – incomodava.
Finalmente chegara o esperado dia. A minha avó tinha-me feito propositadamente uma bolsa de retalhos, com os restos de uns tecidos que sobraram dos vestidos e blusas que confeccionara para as minhas tias. Era, predominantemente, em tons de azul e era grande. Muito grande, mesmo!
À hora combinada lá estava eu para fazer o meu “baptismo” como “pedidor de santinhos”. Era o mais pequeno naquele grupo de sete almas. Levava umas calças de saragoça castanhas que, se por um lado me picavam nas pernas, por outro lado davam-me um certo aconchego perante o frio intenso que se fazia sentir. Uma camisa e um pullover por cima. Os meus colegas de aventura, já de voz mais grossa, vestiam quase à homem, enquanto as raparigas usavam vestidos e blusas garridas, mas próprios para a estação, sendo de destacar as tranças da Lurdes e os laços que a Ana levava nos cabelos. O céu continuava ameaçador.
– Vamos embora. A volta é grande e tu ó Fernando, que tens a pata mais pequena, não te atrases. Corda nos sapatos!…confesso, na minha inocência dos sete anos, olhei disfarçadamente para os meus pés, pensando se em vez de trazer aquelas botas cardadas com sola de pneu de avião, não deveria antes ter trazido uns sapatos…e claro, com corda a servir de atacadores…
A paisagem era bucólica. Os soutos já tinham amarelecido, sendo que aos amarelos mais suaves se seguiam manchas mais avermelhadas. O chão juncado de castanhas e ouriços. Os Diospireiros haviam deixado cair as folhas e mostravam agora que desnudos, pendurados, os seus tão formosos quanto deliciosos frutos. As romãzeiras mostravam-nos as sua romãs como que a rirem-se para nós, com os dentes à mostra…Os pinheiros, esses continuavam a verdegar, como que a querer dizer que ali o mando era seu: seriam verdes todo o ano! O ribeiro corria apressado por entre apertados desfiladeiros numa pressa inusitada, que lhe era dada pela grande quantidade de água que transportava: começara a chover lá pelos fins de Setembro e quase que nunca mais parara. A não ser há três dias, que não chovia muito, como que a anunciar que vinha aí o Verão de S. Martinho.
…e lá fomos nós…o Zé à frente, ou não fosse ele o Chefe do grupo, e eu atrás, ou não fosse eu o mais pequenote…os caminhos que davam acesso aos montarecos espalhadas pelos campos eram bem conhecidos dele e chegado a uma casa a conversa era sempre a mesma:
– Mas que é que vocês querem? E vocês são tantos…
– Olhe, Ti Maria, vimos pedir os santinhos…
– Tá bem, tá bem…abram lá as vossas bolsas…
E como forma de nos presentear, a maior parte das pessoas dava-nos das frutas da época: castanhas, marmelos, dióspiros, “peroucos”…romãs…
Os terrenos que circundavam o ribeiro eram povoados de hortas onde a par das árvores de fruto que serviriam, entre outras coisas, para dar aos gaiatos que aparecessem a pedir os Santinhos, havia leivas de milho, abóboras bacoreiras, feijão…o Ti Zeferino andava nesse dia a colher as abóboras que depois poria a encascar nas bordas do tanque da rega que tinha lá ao pé da sua casa; simultâneamente afugentava as menjengras que teimosamente iam debicando as maçarocas, em busca dos bagos de milho mais amarelos, doces e suculentos. Para além de lhe servirem de alimento, as abóboras seriam igualmente para dar ao porquito que engordava, até Janeiro, lá no chiqueiro e as plantas de milho serviriam para fazer a cama aos dito porquito…
Como começara a chuviscar um pouco mais acentuadamente, o ti Zeferino não abandonou o trabalho, mas cobriu-se pela cabeça com uma saca, fazendo um capuz. Pelo menos as costas e a cabeça ficavam-lhe cobertas.
– Bom dia Ti Rosária…então não nos dá os santinhos…???
– Dou pois…então quem aquele tão pequenino ali atrás?
– Este é o Fernando, o neto do Mestre Cézaro…
– Parece o caga-no-ninho…
Sumiu-se lá para casa e quando regressou, além da já habitual fruta deu um tostão a cada um de nós…nem assim, com o tostão, mereceu a minha simpatia…
E lá seguimos, Monte de Cima, Monte do Meio, Monte de Baixo…encontrámos outros gaiatos que vinham em sentido contrário – são só três, devem amanhar-se melhor, pensei para com os meus botões.
Por volta do meio-dia faltavam-nos só ir a duas casas. Estávamos contentes com a “colheita” e cada qual ia fazendo os seus comentários.
– Ti Xico, olhe vimos pedir os Santinhos…
– Tá bem, a minha Tonha já trata disso. Tonha anda cá aqui aos gaiatos…quem é aquele ali ao fundo?
– É o Fernando, o neto do Mestre Cézaro…
– Ena pá, o gajo está espigadote…
Até hoje ainda não sei se afinal eu era o caga-no-ninho ou se estava espigadote…
Só já faltava uma casa. Era a de uma pessoa muito pobre, a Ti Jaquina Quadrada. A maior parte dos gaiatos nem sequer por lá passava pois era certo e sabido que não tinha possibilidade de lhes dar nada. Mas o Zé quis ir. Ao aproximarmo-nos da casa da Ti Jaquina, ele disse para ficarmos ali que ele iria lá sozinho. E foi. E voltou. E não trouxe nada.
– A Ti Jaquina não tem nada para nos dar…coitada, tomara que lhe dessem a ela.
Acabava ali a minha primeira de muitas experiências, depois sempre repetidas mas sempre diferentes, de andar a pedir os Santinhos. Despedimo-nos e cada um seguiu o seu caminho. Eu, por morarmos perto, segui só com o Zé. Então reparei que a bolsa dele estava vazia. Perguntei-lhe:
– Zé, perdeste as tuas coisas? Que aconteceu?
– Olha Fernando, não precisas de dizer a ninguém, isto fica só entre nós os dois. Como a Ti Jaquina é tão pobre que quase não tem para comer, eu dei-lhe tudo, incluindo o dinheiro que me tinham dado…
Na inocência dos meus sete anos, não percebi a generosidade do gesto do Zé. Disse-lhe até amanhã e quando cheguei a casa, contei tudo a minha avó. Ela então disse-me
– E tu, Fernando, que fizeste?
– Eu, avó? Nada…
– Então pegas nas tuas coisinhas, vais a casa do Zé e divides metade com ele. Está bem?
– Está bem, avó.
E eu fui…